É possível “distinguir o joio do trigo” quando todos dizem estar alinhados à agenda ESG?
Por Luciane Moessa*
Com a intensificação da crise climática e o aumento da exclusão socioeconômica e da degradação de ecossistemas dos quais todos dependemos, a discussão de temas ASG (ambientais, sociais e de governança, que nada mais é do que a sigla que o mercado de investimentos escolheu para denominar fatores relacionados ao Desenvolvimento Sustentável) tem ganhado mais espaço entre o público leigo no Brasil e no mundo.
Também aumenta a percepção do papel estratégico do setor financeiro para promover o alinhamento da nossa economia a demandas de sustentabilidade, já que a grande maioria das atividades econômicas dependem da obtenção de crédito ou da captação de investimentos (recursos de quem investe no setor produtivo, por exemplo em ações, para obter ganhos de capital). Vale notar que o Brasil tem um mercado de capitais (onde se realizam os investimentos) relativamente diminuto no que diz respeito ao setor produtivo (com apenas cerca de 400 empresas listadas na sua única Bolsa de Valores, enquanto a Malásia, com menos de 33 milhões de habitantes, tinha 979 empresas listadas em 2021), além de pouco acessível a pequenas e médias empresas (apesar de inovações como plataformas de “crowdfunding” para investimentos, não doações, que porém têm liquidez muito baixa).
Aqui, o mercado de crédito bancário é quase três vezes maior do que o mercado de capitais (que acaba por ter uma proporção muito maior de títulos públicos), sendo que os grandes bancos também gerem investimentos de pequenos (pessoas físicas que decidem ir além da tradicional poupança) e grandes investidores (como seguradoras e entidades de previdência), operam nas duas frentes (crédito e investimentos), de modo que seu papel na alocação de recursos (e portanto, na definição de que atividades econômicas efetivamente são viabilizadas) não pode ser subestimado.
As instituições bancárias brasileiras também contam com clientes de todos os tipos para serem lucrativas (grandes instituições chegam a ter cerca de metade da sua carteira de crédito formada por pessoas físicas, que são as que pagam juros mais altos, exceto no crédito rural e habitacional). Os próprios bancos também captam recursos no mercado de capitais, tanto no Brasil (na B3) quanto no exterior (bolsas de Nova Iorque, Londres, etc). Ao mesmo tempo, desde 2008, o regulador bancário brasileiro (que é também o nosso Banco Central) tem paulatinamente buscado dirigir a atuação das instituições que ele fiscaliza rumo à integração de fatores socioambientais (incluindo expressamente os climáticos) – tendência que se fortaleceu bastante nos últimos dois anos e o tema continua sendo uma das prioridades na atuação do BCB.
Assim, nossos bancos possuem motivações de diversas naturezas para procurarem (parecer) ser cada vez mais “verdes”, mas o desafio é saber o quanto eles de fato são. Quando se lê o relatório de sustentabilidade (ou equivalente) de qualquer grande banco, sempre se vai encontrar, por exemplo, cifras fabulosas relativas a linhas de crédito e investimentos com características “verdes” ou de inclusão social, mas jamais se encontra, por exemplo, a informação de qual o percentual que essas linhas de crédito ou esses investimentos representam na carteira do banco como um todo.
Eles também se dedicam a descrever suas atividades filantrópicas (ou de responsabilidade social) e explicam como integram fatores socioambientais em suas próprias operações e mesmo na contratação de fornecedores – mas isso tem impacto ínfimo se comparado à sua carteira de crédito ou de investimentos (normalmente algo que não chega a 0,1%). Entretanto, se a informação que se busca é o que eles fazem para evitar financiar atividades que causam danos socioambientais, muitas vezes só é possível encontrar informações bastante genéricas. Não fica sempre claro o que se entende por fatores socioambientais nem se eles levam em consideração os diferentes riscos de cada setor econômico (é evidente que atividades agrícolas, industriais, de produção de energia ou de mineração têm indicadores muito distintos, por exemplo). Tampouco fica claro onde são buscadas informações para avaliar riscos socioambientais e qual a consequência efetiva dessa avaliação – muito poucos divulgam o percentual de casos em que negam crédito por esse motivo, se e quanto essa avaliação se reflete nas condições da concessão de crédito (taxa de juros, limite, prazo) ou na realização do investimento, e quais os critérios utilizados, com que frequência e com base em que critérios os riscos socioambientais são monitorados, o que fazem para mitigar esses riscos.
Também não divulgam (ainda) qual é, no fim das contas, o perfil da sua carteira de crédito ou de investimentos com relação a esses riscos socioambientais – eles estão afinal financiando mais ou menos atividades com impactos negativos? Mais ou menos atividades com impactos socioambientais positivos? O quanto o banco tem investido em capacitação nessa área? Qual a dimensão (em termos proporcionais) de equipes encarregadas de gerenciar riscos e impactos socioambientais de portfólios gigantescos? A instituição tem metas nessa matéria e o cumprimento dessas metas afeta a remuneração dos órgãos diretivos? O que se encontra são, predominantemente, informações pontuais, sendo que mesmo as respostas a questionários de iniciativas que buscam essa visão do todo (como o Carbon Disclosure Project, o ISE da B3, os Principles for Responsible Banking e os Principles for Responsible Invesment) por vezes são dadas de forma vaga ou inconsistente.
É por esse motivo que a Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS) criou o Ranking de Atuação Socioambiental de instituições financeiras (RASA), que acaba de avaliar dez grandes bancos brasileiros: Banco do Brasil, Caixa Econômica, Itaú, Bradesco Santander, BTG Pactual, Safra, SICOOB, SICREDI e Rabobank. Todos são avaliados com a mesma régua: foram coletadas informações que essas instituições divulgam publicamente, houve uma fase de interação para que elas pudessem complementar as informações e, ao final, publicamos aqui os resultados da avaliação objetiva e global da atuação desses bancos (que representam mais de 80% do mercado de crédito brasileiro) na matéria.
Em 2023, avaliaremos instituições financeiras de desenvolvimento, seguradoras, entidades de previdência (abertas ou fechadas) e gestoras de investimentos independentes. Essa iniciativa é inédita e veio para ficar, sendo que buscamos, com essa transparência e objetividade, gerar motivação para o aprimoramento do mercado financeiro brasileiro na agenda ASG.
*Luciane Moessa é Ph.D., autora de pesquisa pós-doutoral em Sistema Financeiro e Desenvolvimento Sustentável (USP) e fundadora da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).
Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.
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