ARTIGO: Como grileiros de terras públicas estão colocando o setor financeiro em alto risco

Instituições financeiras vêm emprestando recursos para supostos proprietários que, embora não tenham ainda comprovação de propriedade, usam o CAR para conseguir crédito para seus negócios

 

Por Paulo Moutinho*

 

Uma enorme parte do desmatamento na Amazônia brasileira ocorre nas chamadas Florestas Públicas Não Destinadas (FPND). São cerca de 56 milhões de hectares — duas vezes o tamanho do estado de São Paulo — de florestas que ainda não foram designadas, pelos governos estaduais ou federal, para nenhum uso específico, como um parque nacional, uma reserva extrativista, uma floresta para produção sustentável, entre outras categorias. Esta demora na destinação destas florestas, como manda a lei, tem resultado na sua destruição pela ação criminosa de grileiros que, pelas florestas não terem seu ciclo de consolidação fundiária concluído, consideram-nas terras de ninguém.

 

O avanço da grilagem nas florestas públicas cresceu nos últimos anos. A grilagem, que antes falsificava documentos com o auxílio de grilos, agora se utiliza do uso fraudulento do Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR, uma conquista importante da sociedade brasileira, é um documento auto-declaratório que o próprio ocupante da terra usa para dizer o tamanho e a localização de sua propriedade, bem como as áreas de cultivo e preservação nela encerradas. Como o documento é feito pela própria pessoa que está na terra, a emissão do CAR não exige que nenhuma comprovação de propriedade prévia seja realizada.

 

Em princípio, é possível fazer um CAR declarando-se responsável por um terreno na praia de Copacabana, por exemplo. Por essa facilidade, muitos ocupantes ilegais de terras públicas usam este instrumento de regulação ambiental como se fosse um documento fundiário. Este uso ilegal do CAR representa um indicador de que a disponibilização de dados sobre a localização dos imóveis rurais ou a exigência de autorização de supressão da vegetação não são suficientes para acabar o desmate ilegal na Amazônia. É preciso, portanto, alertar o setor financeiro de que uma imensa área de florestas públicas vem sendo derrubada ilegalmente e que o CAR está sendo usado para legitimar a posse ilegal dessas terras.

 
Em outras palavras: há uma grande chance de que os grileiros estejam enganando investidores, colocando seus investimentos em risco.
 

Um estudo do IPAM mostrou que terras públicas não destinadas concentram mais da metade (51%) do desmatamento do bioma amazônico. O IPAM também mostrou que dos 3,2 milhões de hectares desmatados de florestas públicas não destinadas na Amazônia até 2020, 65% possuíam CAR irregular. A sobreposição do cadastro com territórios indígenas é ainda maior. A Terra Indígena Ituna-Itatá, no Pará, por exemplo, tem 97% da área com CAR sobreposto, segundo o MapBiomas.

 

O fato de os criminosos avançarem a passos largos sobre as terras públicas brasileiras é uma das consequências do recente enfraquecimento das políticas de combate à criminalidade envolvendo o meio ambiente. Mas, embora estejamos falando do patrimônio público ambiental brasileiro sendo dilapidado, o desmatamento ilegal em terra pública — grilagem — não é relevante apenas para os entes públicos. Ele é também uma evidência de que o setor financeiro não tem aplicado os meios de verificação (due diligence) adequados para evitar tais investimentos.

 

Diante do atual cenário, é cada vez maior a preocupação de investidores — coletivos ou individuais — em despejarem recursos em empreendimentos irregularmente estabelecidos em terras cobertas pelas Florestas Públicas Não Destinadas. Contudo, esta preocupação ainda está no radar de poucos investidores. Há certo desconhecimento pelo setor de que esta imensa área pública florestada existe e que nela é proibida a existência de propriedades privadas.

 

Já é comum a suspeita de que instituições financeiras vêm emprestando recursos para supostos proprietários que, embora não tenham ainda comprovação de propriedade, usam o CAR para conseguir crédito para seus negócios. Para evitar isso, é preciso que, não apenas investidores, mas também corretoras se informem sobre essa situação ao decidir sobre seus portfólios. Investidores, mesmo os particulares, estão cada vez mais solicitando às corretoras que não montem carteiras de investimentos que tenham risco de gerar mais desmatamento, seja ele legal ou ilegal. Ainda, recentemente, fundos de pensão americanos têm procurado pesquisadores brasileiros para saber se seus investimentos na Amazônia estão impregnados com grilagem.

 

Como resolver o problema

Destinar terras públicas na Amazônia e cancelar imediatamente o Cadastro Ambiental Rural em terras públicas são duas medidas que integram as soluções para tirar a vegetação nativa do mercado ilegal de terras e eliminar o desmatamento ilegal.

 

Do lado dos investidores, dados do Guia de Gestão de Riscos e Oportunidades Ambientais no Mercado Financeiro Brasileiro, da Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), apontam alguns caminhos para que o setor de investimentos possa ficar atento às causas do desmatamento ilegal, tais como a grilagem de terras públicas.

 

Segundo a entidade, a análise de riscos ambientais seja para clientes ou para operações de crédito específicas, deve conter pontos tais como: I) Verificar se é o caso de licenciamento ambiental e de outorga para uso de recursos hídricos e se o imóvel possui ambos; II) Verificar se o produtor ou empresa possui área embargada por órgão ambiental estadual ou federal; III) Em caso de atividade envolvendo imóvel rural, verificar inscrição no CAR e em que data; IV) Verificar se houve análise e validação do CAR; se já houve primeira análise, verificar se já houve pendências e de que natureza (sobreposições com outros imóveis, terras indígenas, unidades de conservação; embargos; ausência de atendimento a notificações para esclarecimentos); V) Verificar se houve declaração de passivo ambiental não regularizável (após 22.7.2008); indagar se já houve início da recomposição florestal (pelo Código Florestal, deveria começar em maio de 2014) e se há orçamento dos custos para esse fim; VI) Verificar se houve autuações do produtor rural/empresa por infrações ambientais junto ao órgão ambiental estadual e junto ao IBAMA, infrações e penalidades envolvidas em andamento; VII) Verificar se há inquéritos civis ou TACs firmados com o Ministério Público, temas e valores envolvidos e andamento; VIII) Verificar se há processos judiciais em matéria ambiental, temas e valores envolvidos e andamento; entre outros.

 

Outra medida que deve ser adotada pelos investidores, também de acordo com a SIS, é a verificação das informações em outras bases de dados, tais como o Cadastro Nacional de Florestas Públicas, o MapBiomas, o MapBiomas Alerta e serviços pagos, por exemplo. Essa prática auxilia na apuração da veracidade das informações declaradas no CAR e também atualiza essas mesmas informações – essa checagem tanto pode identificar sobreposições com terras indígenas, territórios quilombolas, unidades de conservação, quanto pode indicar se houve desmatamento maior do que o declarado no CAR ou posterior à inscrição no CAR. Ainda pode comprovar se existe cobertura vegetal não declarada no CAR e se o início da recomposição florestal eventualmente afirmado pelo produtor rural de fato ocorreu.

 

O setor financeiro está acostumado a regras rígidas de “compliance”. No Brasil, os cuidados com o investimento geraram um mercado sólido e confiável. Nosso mercado, por sua regulação bem-feita e conservadora, resistiu a ondas como a dos títulos podres que estouraram em 2008 nos Estados Unidos.

 
Agora é necessário aplicar o mesmo rigor e cuidado para limpar a cadeia de dinheiro que alimenta a destruição ilegal de patrimônio público e outros crimes, como pistolagem e corrupção, associados à grilagem.
 

O desmatamento na Amazônia é efeito colateral do maior processo de roubo de terra pública do mundo. Nosso setor financeiro tem a capacidade técnica para secar a fonte de dinheiro que financia essa operação. Basta querer.

 
*Paulo Moutinho é cientista-sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e porta-voz da campanha Seja Legal com a Amazônia.
 
 
 
 
foto: depositphotos

 

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